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bases do projecto

O projecto Manual para Descobrir Lugares baseia a sua implementação e a criação dos seus recursosna perspectiva de desenvolvimento humano do Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano de Urie Bronfenbrenner, nos estudos da Psicologia Ambiental que abordam o conceito de vinculação ao lugar e nos estudos sobre a independência de mobilidade e a autonomia da criança.

Segundo Bronfenbrenner (2005) o desenvolvimento humano ocorre por processos em que as características da pessoa e do ambiente interagem em permanência, produzindo constância e mudança ao longo da vida. A interacção ocorre em contextos ecológicos diferenciados, sendo o primeiro deles a família, seguindo-se outros microssistemas, como a escola. A criança cresce transitando entre os vários sistemas ecológicos, complexificando as suas experiências sociais, em dependência dos contextos de vida que lhe são proporcionados ao longo do tempo.

O processo de interacção é afectado não só pelos sistemas que lhe estão próximos (família, escola, vizinhança) e com os quais a criança entra em contacto directo, como também pelos sistemas com os quais não se relaciona directamente, mas que exercem influência em si, como é o caso do macrossistema, que comporta em si os sistemas de valores e crenças dominantes num determinado momento em cada sociedade.

A transição da criança de um microssistema para vários microssistemas, introduz no seu percurso um mesossistema, ou seja, a participação da criança em vários ambientes, possibilitando o contacto interrelacionado com outras instâncias sociais, complexificando cada vez mais a sua relação com os outros, com a sociedade e cultura onde se encontra a crescer. A rede social que assim surge, tendo como referência principal a criança em desenvolvimento, é formada tanto pelas pessoas que interagem directamente com a criança como pelas que, directa ou indirectamente, influenciam esse processo de crescimento.

A ligação clara entre o desenvolvimento do ser humano e o tempo / espaço onde decorre esse crescimento expressa-se, por Urie Bronfrenbrenner, como um percurso multifacetado. Interrelacionando-se a pessoa e os diversos ambientes que esta vai habitando ao longo da sua vida, reforça-se a importância que a comunidade e o bairro - onde a criança se desloca e/ou vive - possui para o seu harmonioso desenvolvimento.

O acesso a vários contextos da realidade em que se encontra inserida é essencial para o seu desenvolvimento global, sendo este acesso mediado pela família durante a infância e por outras figuras importantes para a criança, como o/a professor/a.

A organização da vida psíquica do ser humano desenvolve-se a partir do funcionamento do corpo e da sua movimentação. O bébé nasce e explora, a partir do colo, quem o segura e acolhe. Ao longo do tempo vai alargando o seu território até aos limites do que está ao alcance da mão e de todo o seu corpo. O que é objectivamente investido, sentido e percebido é, primeiro uma experiência corporal, tornando-se posteriormente numa vivência subjectiva. Ao longo do tempo os horizonte alargam-se: com o gatinhar e a possibilidade de andar, a exploração e o conhecimento do espaço e dos outros aumenta, apoiado pela proximidade de uma figura de referência para a criança, que funciona como base de segurança, nesta conquista do mundo. Por volta dos 2/3 anos as investidas pelo espaço são maiores e para mais longe. Os adultos oferecem-se como base de segurança para estas explorações e caminhadas e oferecem o mundo à criança em pequenas doses q.b.

Aos adultos solicita-se o equilíbrio alquímico entre estar suficientemente perto para permitir a exploração em segurança do que rodeia a criança e suficientemente longe para possibilitar o confronto com o desconhecido, a descoberta. A mobilidade da criança pelo ambiente que a rodeia possibilita o conhecimento do mundo e de si mesma, nesse confronto continuo entre a própria e os outros, que consigo partilham o mesmo espaço. Mover-se de forma independente pelo espaço está directamente relacionado com o desenvolvimento da criança, nomeadamente com a sua autonomia.

A independência de mobilidade é um conceito que se refere ao modo como a criança desenvolve ao longo do tempo uma representação do espaço físico progressivamente mais consistente, assim como uma liberdade progressiva de acção no espaço quotidiano da sua vida (Alparone & Pacilli, 2012).

Esta capacidade de autonomia de mobilidade face ao ambiente que a rodeia, permite o desenvolvimento de representações cognitivas do espaço físico, a descoberta do ambiente físico e o seu funcionamento, a descoberta das relações com o mundo adulto, o sentido de descoberta e de resolução de problemas, o desenvolvimento de hábitos saudáveis de vida activa, o desenvolvimento da autonomia e liberdade no brincar, essenciais para o equilíbrio emocional e psicológico da criança (Malho, 2010).

A imagem mental do ambiente desenvolve-se progressivamente, a par e passo com a possibilidade de efectivamente o explorar, convergindo na associação da percepção imediata e da memória da experiência passada. A criança pode ler a paisagem na medida em que pode reconhecer os elementos urbanos (delimitações de ruas, monumentos, edifícios e suas características, etc) e organizá-los de forma coerente. A legibilidade da paisagem relaciona-se directamente com a imagem mental que cada pessoa pode gerar sobre um dado local, sendo subjectiva e relacionada com as vivências de cada um (Lynch, 1982). A estruturação e a identificação do meio em que se vive é essencial para o ser humano.

A exploração autónoma do ambiente quotidiano pela criança ocorre essencialmente nas deslocações casa-escola e nos momentos de brincadeira na rua.

Os dados apresentados pelo estudo realizado, a nível nacional sobre a mobilidade das crianças portuguesas durante os anos de 2011 e 2012, por Rita Cordovil, Frederico Lopes e Carlos Neto (FMH-UL, 2014) que incidiu sobre um milhar de crianças residentes em diversas cidades do país, referem números inquietantes: 56% por cento das crianças com 8 e 9 anos inquiridas deslocam-se de carro até à escola, 35% das crianças deslocam-se a pé e sozinhos. As respostas dos pais relativamente ao modo como se deslocavam para a escola quando tinham a mesma idade que os/as filhos/as são totalmente opostas: 86% deslocavam-se a pé e sozinhos e 9% deslocavam-se de carro. Os números que o INE apresenta relativamente à mobilidade actual das crianças indicam que a maior parte das crianças estuda na freguesia em que reside, desloca-se maioritariamente de carro até á escola e demora 15 minutos nessa deslocação (INE, 2014).

Brincar na rua é um facto e uma possibilidade em extinção (Neto, 1999), com maior incidência no meio urbano.

Explorar autonomamente o ambiente e “descobrir lugares” são tarefas difíceis de executar para uma criança no actual contexto social e urbano, fruto de transformações sociais, culturais, tecnológicas, ocorridas nos últimos anos.

A criança atribui significados e constrói representações dos espaços físicos do seu quotidiano, fruto de vivências pessoais, de atribuições grupais ou crenças culturais.

Sabemos que os espaços físicos e os lugares que fazem parte da nossa vida estruturam as nossas experiências e condicionam e contribuem para a edificação da nossa existência.

Descobrir lugares no projecto Manual para Descobrir Lugares é encontrar significados internos para lugares geograficamente colocados no exterior, ou exteriorizar lugares internos conferindo-lhes uma significação diferente da habitual, proporcionando uma reelaboração de espaços internos, como a representação da família como um mapa.

Um determinado espaço físico torna-se lugar quando se lhe atribui um significado ou confere um sentido, que advém das interpretações que se fez desse espaço. A interpretação que se faz desse espaço é condicionada pelo contexto simbólico, histórico e grupal que lhe está associado. Um lugar será então o encontro entre as cognições, emoções e acções que resultam da interacção da pessoa que as experiência, com os outros e o ambiente.

A vinculação ao lugar é a ligação emocional ao lugar e está relacionada com a emergência de laços afectivos positivos com o lugar, desenvolvidos pela criança na relação com o seu ambiente físico e social. A vinculação ao lugar implica o desejo de se manter um relacionamento com aquele lugar ao longo do tempo em diferentes fases de vida. O desenvolvimento de laços afectivos com os lugares é um pré-requisito ao próprio equilíbrio psicológico e ao bom ajustamento da pessoa com o meio, potenciando o sentimento de continuidade e estabilidade perante as mudanças que a vida transporta e facilitando o envolvimento da pessoa nas actividades locais existentes. Aumenta o envolvimento com a sua cidade e promove a mobilidade e a autonomia da criança no espaço da cidade, o físico e o social (Hidalgo&Hernandez, 2001) (Lewicka, 2008).

O projecto Manual para Descobrir Lugares potencia a identificação de lugares, internos e externos através de um guia de exploração do espaço individual, familiar, social e físico do bairro em que a criança se encontra inserida. Este processo de descoberta e exploração de espaços e lugares é mediado pelo manual / livro pessoal que cada criança constrói, continente de muitos conteúdos, e pelo adulto que se disponibiliza a mediar a relação da criança como o seu bairro/ambiente do quotidiano e ajuda a elaborar as representações sobre esse mesmo espaço, interno e externo.

Consideramos a idade escolar o momento mais propício ao envolvimento das crianças neste projecto, nomeadamente a partir dos 8/9 anos, momento em que se estabelecem novas relações sociais e em que a visão e a compreensão do mundo são reformuladas, assim como no plano cognitivo e emocional se encontram em actualização competências ligadas à orientação no tempo e no espaço, à relativização do pensamento.

Por volta dos 7/8 anos a criança desenvolve progressivamente uma diferente apreensão da realidade com o desenvolvimento do conhecimento lógico, as regras substituem gradualmente as fantasias, a noção de invariante surge com as diversas conservações, o pensamento torna-se menos egocêntrico, mais categorial, reversível e impondo o seu primado sobre a percepção.

Ao nível das relações sociais da criança com outras crianças observa-se a emergência dos jogos de regras, a maior preponderância no brincar dos jogos colectivos e um incremento na comunicação verbal entre as crianças, ou seja, as crianças conversam mais e sobre mais coisas.

É comum nesta idade o interesse das crianças pelas colecções, seriações, actividades de localização e reconhecimento/identificação que traduzem o seu funcionamento interno, uma reorganização psíquica que prima pelo controlo das pulsões.

É igualmente por volta desta idade que o pensamento perde a unidireccionalidade, ou seja, a percepção das coisas que rodeiam a criança deixa de ser global e sob um único ponto de vista, é possível considerar a mesma coisa (objecto) segundo ângulos diferentes e em várias direcções, é possível fazer rewind, fazer ida e volta, a posição de onde a criança observa o mundo pode ser mudada.

Descobre-se uma nova ordem nas coisas do mundo: até agora as coisas tinham uma ordem intuitiva, por vezes mágica, sucediam-se sem uma ligação lógica entre elas, agora ordenam-se e tornam-se coerentes entre si.

Ocorre uma ampliação, coerência e ligação na percepção do mundo exterior em associação com a capacidade de se separar do objecto que está a percepcionar / conhecer e de se distanciar, em oposição à anterior sujeição a um único ponto de vista, o seu.

O objecto/coisa a ser conhecida já não é um todo com um único aspecto global mas sim um objecto / coisa com várias características parciais e é possível, seguindo diferentes pontos de vista distinguir qualidades diferentes no objecto/coisa: a sua forma, a sua textura, a sua consistência, a sua cor, etc. – relatividade.

A criança pode agora analisar as coisas que a rodeiam e surge a noção de relatividade das coisas e das percepções.

A descoberta de que existem outros pontos de vista, singulares e diversos do seu ponto de vista, ganha consistência e é acompanhada pela relatividade das proporções e dos valores: a ampliação do pensamento que possibilita a multiplicação dos pontos de vista é acompanhada por uma ampliação do campo social que permite realizar comparações entre pessoas, ou seja, a criança entende mais claramente que a sua realidade é uma entre muitas outras possíveis.

Como o pensamento se distancia em relação ao objecto percepcionado, torna-se possível a utilização de conceitos: uma casa deixa de ser uma determinada casa, para passar a ser um conjunto mais lato de características que se agrupam no conceito casa.

O pensamento é apoiado pela exploração da realidade, a criança pensa melhor sobre coisas que pode ver e tocar.

Sensivelmente por volta dos 7/8 anos a orientação no tempo e no espaço transformam-se, tornam-se contínuos e independentes da criança: gradualmente as ruas que se sucedem umas às outras numa cidade, surgem organizadas num plano e fazendo parte de um conjunto orgânico e coerente.

Nesta idade a distinção entre o passado e o futuro já está definida, no entanto a capacidade de medir com exactidão o tempo presente em dias, semanas, meses irá desenvolver-se gradualmente e só progressivamente se separa da sua colagem a pessoas conhecidas: a leitura dos espaços de tempo é muitas vezes feita tendo em conta a idade da pessoa mais velha que é conhecida.

No contexto escolar e noutros contextos a criança toma conhecimento de acontecimentos que sucederam noutros tempos, a história, e torna-se progressivamente capaz de situar, num passado relativamente sucessivo, os acontecimentos e as pessoas de cuja existência tomou conhecimento.

As datas históricas, a história da sua cidade, aspectos significativos da história do seu bairro, ajudam a criança a constituir as referências indispensáveis para o conhecimento do tempo e fomentam uma consistência entre passado, presente e futuro.


*Caderno Pedagógico / Áudio-Guia (2013/2014) / Instalação de Som & Vídeo (2014/2015)/ Guia de Alfama e Castelo (2013/2014)/ Guia de Campo de Ourique-Vale de Alcântara-Casal Ventoso (2014/2015

Referências Bibliográficas

Alparone, F.R. & Pacilli, M.G. (2012). On children’s independent mobility: the interplay of demographic, environmental and psychosocial factors. Children´s Geographies. 10:1, 109-122.

Bronfrenbrenner, U. (2005). Making Human Beings Human: Bioecological Perspectives on Human Development. Thousand Oaks CA: Sage Publications.

Hidalgo, M. C., & Hernandez, B. (2001). Place attachment: conceptual and empirical questions. Journal of Environmental Psychology, 21, 273–281.

INE, Destaque Informativo, 30 de maio de 2014 consultado aqui: http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=217507344&DESTAQUESmodo=2

Lewicka, M. (2008). Place attachment, place identity, and place memory: Restoring the forgotten city past. Journal of Environmental Psychology, 28, 209-231.

Lynch, K. (1982). O homem e a cidade. Mem Martins: Europa América.

Malho, M. J. (2010). Reflexão e acção – A criança e a cidade : independência de mobilidade e representações sobre o espaço urbano. Noesis.  83,  52-57.

Manzo, L.C. &   Devine-Wright, P. (Eds) (2014). Place Attachment: Advances in Theory, Methods and Applications. New York: Routledge.

Neto, C. (1999). O jogo e tempo livre nas rotinas de vida quotidiana de crianças e jovens. Tempos livres, a criança o espaço a ideia. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, Departamento de Acção Social.